Este livro propõe que, pela beleza inigualável de sua poesia e pela complexidade fascinante de suas tramas, Shakespeare pode nos ajudar a entender melhor os múltiplos desafios de nosso tempo. Suas tragédias poderosas e escuras convivem com a leveza e a luminosidade das comédias, enquanto suas peças históricas mostram a tensão permanente entre as forças antagônicas que moldam nosso cotidiano. Assim como nós, ele vivia o momento de ruptura que marca a ascensão do mundo Moderno, uma época em que as transformações nos modos de produção do capital, as novas tecnologias e as novas formas de socialização colocavam de ponta à cabeça todas as instituições do mundo medieval que, não obstante, continuavam a funcionar como horizonte simbólico que estruturava a vida. A sensação dos contemporâneos de Shakespeare é a de que, de um momento para outro, tudo “o que parecia sólido se desfaz, como um sopro na brisa”. Esse sentimento não é estranho às sociedades pós-modernas.
No centro dessa ruptura radical, está aquilo a que se poderia chamar de mudança do estatuto do desejo, traço constitutivo da originalidade Moderna. Em cada uma das peças de Shakespeare, há uma tensão palpável entre o desejo de realização interna das personagens — Macbeth, Romeu e Julieta, Otelo e Desdêmona, Lear, os exemplos se podem achar em cada uma de suas tramas — e a normatização externa do social, com seus comandos, suas hierarquias, suas leis, seus interditos.
Esse desejo interno é apresentado, no entanto, com grande ambivalência, o que tona sublimemente fascinantes as tramas de Shakespeare. O desejo pode ser instrumento de epifania pessoal e de restauração da ordem, como nas comédias, ao mesmo tempo em que pode ser causa de perdição individual e instauração da desordem, como nas tragédias e peças históricas. O Bardo não dá um veredito definitivo sobre a natureza do desejo mas descreve com beleza inigualável seu funcionamento, suas mudanças constantes e a forma como alternadamente nos eleva e nos deprime, fazendo de nós seres em permanente mudança.
Se o mundo segue fora de prumo — talvez mais ainda do que há uma década — o teatro de Shakespeare continua a ser um espelho poderoso para nosso tempo. Mais do que isso, pela pluralidade de leituras que permite, pela convergência de interpretações díspares que consente em sustentar, seus textos nos lembram que nossas percepções são sempre provisórias e limitadas, e que a diversidade de olhares, a pluralidade de distinções da grande cena que é nossa vida em comum é uma riqueza a preservar, não um problema a combater.
